1. OBJETIVO E OBJETOÉ de se esperar que pesquisadores e estudiosos de uma disciplina saibam exatamente do que se trata essa disciplina; porém se passarmos um questionário com essa pergunta a um grupo de lingüistas, talvez iremos obter uma resposta dominante, como: “Ora, a lingüística é o estudo cientifico da linguagem humana”. E certamente essa “definição” encerraria o debate sobre a natureza do objeto de investigação lingüística.
Mas, se ainda houver espaço para uma “epistemologia” da lingüística, esta se concentrará em questões “metodológicas”, ou seja, no esclarecimento do adjetivo “cientifico” na definição acima: quais os métodos que garantiriam a “cientificidade” da lingüística? Vejamos algumas das razões para duvidar da validade dessa postura:
a) Essa posição consiste em supor que o objetivo da lingüística é fazer ciência a respeito da linguagem; para fazer sentido, tal caracterização tem que se opor a outras, como fazer filosofia, fazer mágica, criar efeitos estéticos, fazer jornalismo etc. – todas tendo um mesmo objeto: a linguagem. Então, nos perguntamos se o “objeto”, ao qual se aplicam os diferentes modos de fazer, permanece o mesmo. Em outras palavras, a linguagem, tal como manipulada ou enfocada pela filosofia, pela magia, pela literatura, pelo jornalismo e pela lingüística é invariante, auto-idêntica, independentemente do enfoque?
A resposta é não! Ou seja, a escolha de um objetivo relativamente à abordagem de um objeto determina uma visão, um modo de construir esse objeto. Ao escolher o objetivo fazer ciência, a lingüística propõe de fato um modo de construir ou conceber seu objeto, a linguagem.
b) Ao se instituir em a ciência da linguagem, a lingüística se autocaracteriza como aquela dentre as ciências que poderiam abordar a linguagem que dispõe de um ponto de vista privilegiado sobre esse objeto, ponto de vista que captaria sua essência. Só a lingüística captaria (cientificamente) o objeto linguagem em sua totalidade e naquilo que tem de essencial. A lingüística, assim, constituiria o núcleo das ciências da linguagem, sendo as demais abordagens periféricas ou subsidiárias; isso contém, implicitamente, uma definição do objeto de estudo.
c) Sabe-se que, ao conhecimento da historiografia da ciência, tanto a concepção do “fazer ciência”, como a concepção do objeto e dos métodos de cada ciência particular estão em constante evolução histórica. Quer se conceba tal evolução como linear e cumulativa, quer como uma sucessão de revoluções científicas; como não se pode tomar por fixo o conceito de ciência, tampouco a caracterização do objeto de cada ciência. Assim há as oposições ciência vs. não-ciência e núcleo vs. periferia.
Um tipo de resposta possível ao nosso questionário poderia ser a seguinte: “Não sabemos qual o objeto da ‘linguística’; mas cada um de nós sabe perfeitamente qual o objeto de sua especialização dentro da lingüística”. Logo, não dispomos de uma caracterização genérica do objeto da linguística.
Evidentemente, tal resposta implica uma opção quanto ao objeto da linguística: a opção de fragmentação. Não haveria um objeto da linguística, mas sim um “feixe” de fenômenos relacionados entre si, passíveis de ser estudados de pontos de vista diferentes e independentes uns dos outros.
Na verdade, a questão qual é o objeto da linguística?, longe de ser uma questão ingênua ou simplesmente descritiva, é a questão normativa básica da linguística.
2. OBJETO OBSERVACIONAL E OBJETO TEÓRICOO mundo das aparências é um mundo de diversidades. As ciências fazem reduções parciais da diversidade, isto é, recortam o campo da diversidade observacional de maneiras que lhes parecem apropriadas para o tipo de entidades e de explicações que lhes são preferenciais. Tomemos as teorias da luz como exemplo. A teoria corpuscular da luz, que assume corpúsculos como entidades básicas, vai privilegiar aqueles aspectos dos fenômenos luminosos que se prestam à explicação corpuscular, a saber, a proporção da luz. A teoria corpuscular tem dificuldade para explicar fenômenos como a interferência e prefere concentrar-se em outros fenômenos, como a reflexão e a refração, deixando de lado quase tudo o que diz respeito a cor. Já a teoria ondulatória da luz, assumindo que as entidades básicas são ondas, não encontra dificuldades em explicar fenômenos como a interferência e oferece uma explicação razoável da cor e fenômenos como a difração.
Podemos agora perguntar qual o objeto das teorias da luz e encontrar duas respostas. No nível observacional, o objeto é o conjunto dos fenômenos luminosos e é igual para ambas as teorias. No nível teórico os objetos são distintos. Para a teoria corpuscular impõe-se uma subdivisão da teoria da luz em duas subteorias: a da propagação e a da cor. Na teoria da propagação as explicações em termos de corpúsculos são simples e imediatas, enquanto que na teoria da cor tornam-se tortuosas e problemáticas; já na teoria ondulatória permite unificar essas duas subteorias.
Toda teoria delimita uma certa “região” de realidade como seu objeto de estudos. As disciplinas científicas fazem uma espécie de “loteamento” da realidade, cabendo a cada uma delas um dos “lotes”. Mas este “loteamento” não é sempre bem definido, de forma que há áreas em disputa, porções da realidade que são reclamadas por mais de uma disciplina científica. O objeto observacional de uma teoria é, em princípio, a “região” que a teoria privilegia como foco de sua atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis. Um erro comum é supor que as divisões da ciência correspondem a divisões naturais da realidade.
A extensão desse objeto observacional pode ser assunto de debates, e a linguística tem bons exemplos disso. Aos olhos de seu fundador, a gramática gerativa constitui uma revolução na linguística, não só por oferecer uma teoria radicalmente nova dos fenômenos lingüísticos, mas por delimitar um objeto observacional distinto do de outras teorias.
Delimitando o objeto observacional, a teoria vai identificar entidades básicas, a partir das quais vai atribuir propriedades aos fenômenos pertencentes ao campo e vai estabelecer relações entre eles, transformando o objeto observacional em objeto teórico. Esse objeto teórico é construído a partir da escolha das entidades básicas, do objetivo geral do estudo e do nível de adequação pretendido.
Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações diferentes no objeto observacional.
A gramática gerativa ignora o contexto concreto em que o enunciado ocorreu e concentra-se apenas nele. Entende o enunciado como uma estrutura superficial à qual se associam, por meio de um conjunto de regras, estruturas mais abstratas que categorizam as partes da estrutura superficial e estabelecem relações entre elas. A estrutura superficial é entendida como epifenomenal, ou seja, como uma manifestação sem importância teórica de um aspecto mais importante da linguagem: a gramática inscrita na mente dos falantes. Na verdade, a gramática gerativa só vai se ocupar do conjunto de regras e de princípios que permitem que os falantes gerem sentenças de sua língua.
Para o filósofo John Austin, um indivíduo A realiza um ato de fala assertivo com o qual pretende que um indivíduo B tome conhecimento do conteúdo proposicional do enunciado. Para Austin, o ato de fala do indivíduo A envolve três atos superpostos: um ato locutório, um ato ilocutório e um ato perlocutório.
Assim vemos que, embora o objeto observacional seja o mesmo para todas as teorias, os objetos teóricos são extremamente distintos. Se ignorarmos momentaneamente as eventuais diferenças de extensão dos objetos observacionais, e considerarmos que todas as teorias lingüísticas delimitam o mesmo objeto observacional, encontraremos as razões de diversidade teórica nas divergências metodológicas e ontológicas que certamente ocorrerão quando da passagem do objeto observacional para o objeto teórico.
A definição do objeto teórico “cria” uma realidade particular da teoria. Em outras palavras, a teoria cria um mundo todo seu, que não se confunde com o mundo tal como o observamos. Esse mundo teórico é povoado não só pelos fatos observáveis como também pelas entidades teóricas.
3. O PROBLEMA ANTOLÓGICONa filosofia medieval, encontramos três soluções para o problema ontológico: a solução nominalista, a solução conceptualista e a solução realista (ou platônica). Estas três soluções aparecem como respostas concorrentes para a chamada questão dos universais. Trata-se de saber a que corresponde na realidade o significado de nomes comuns como “homem”, “cadeira” etc. O que se discutia era se esses nomes, de fato, nomeavam algo “real”, ou seja, se “existia” o universal “homem”.
Os nominalistas sustentavam que só existiam “os homens” (os indivíduos particulares) e que o termo “homem”, embora designasse o conjunto dos homens, não correspondia a nada no mundo: era apenas um nome.
Os conceptualistas admitiam a existência desses universais na mente das pessoas. Para eles, além das “cadeiras” particulares, existe uma idéia de cadeira. Porém a existência desses “conceitos universais” é meramente mental, ou seja, eles não existem na mente das pessoas.
Já para os platônicos, só os universais têm existência. Por exemplo: uma cadeira particular só tem existência na medida em que “participa” de um universal. Para eles os universais existem independentemente de qualquer manifestação física particular, bem de qualquer mente que os perceba, e nada existe a não ser como manifestação de um universal.
Bloomfield adota a postura nominalista com relação aos termos teóricos da lingüística. Ele considera que a linguagem se resume ao conjunto de ruídos produzidos pelo falante e que os termos “conceito”, “idéia” etc. são apenas sinônimos de “expressão lingüística”.
A solução conceptualista pode ser percebida no trabalho de Sapir (1933). Para ele, a realidade objetiva das diferenças fonéticas é sempre re-interpretada pela “intuição fonológica” do falante; para Sapir os fonemas são entidades que possuem realidade, mas apenas uma realidade psicológica.
Bloomfield se insere na tradição behaviorista que baniu completamente de seu vocabulário teórico todo e qualquer termo referente ao mental; para eles toda explicação psicológica deve ser feita em termos de generalizações a respeito das relações estímulos/respostas em um organismo. Sapir, por outro lado, é um mentalista declarado.
Embora útil, a classificação medieval requer uma certa elaboração para poder ser aplicada hoje em dia. Em primeiro lugar, é preciso observar que nenhuma teorização pode abrir mão de generalizações. Em segundo lugar, as estruturas matemáticas ou, de modo geral, teóricas nada mais são do que formas convenientes para a organização dos dados.
Zellig Harris, que é classificado como um nominalista, rejeita essa opção instrumentalista, o que de fato o afasta de um nominalismo forte. Harris distingue a questão de saber se a estrutura realmente existe na linguagem e a questão de saber se ela existe realmente nos falantes. Portanto Harris não é nominalista no sentido estrito, na medida em que defende a realidade das estruturas distribucionais; mas está bem próximo do nominalismo na medida em que admite como reais apenas estruturas bem próximas dos dados.
Hjelmslev, Saussure, Chomsky, e mesmo Sapir, distanciam-se do nominalismo exatamente na medida em que admitem, por um lado, a realidade de estruturas não definíveis em termos de conjuntos de dados, sejam elas de que ordem forem.
A segunda elaboração necessária da classificação medieval diz respeito à possibilidade de um realismo diferenciado. É impossível conceber um realismo que, além das idéias platônicas, reconheça também a realidade de objetos físicos concretos e mesmo de objetos psicológicos. Tal teoria foi recentemente proposta pelo filósofo Karl Popper.
Segundo Popper, nós vivemos em três mundos distintos e inter-relacionados, todos eles reais. O primeiro mundo é o mundo dos objetos físicos (mesas, cadeiras, campos de forças, movimentos etc.); o segundo, é o mundo dos processos mentais (intenções, emoções, desejos, crenças etc.); e o terceiro é o mundo das entidades e relações teóricas (teorias, conceitos, argumentos etc.). Para ele os objetos do terceiro mundo são criados pela atividade psicológica humana, mas, uma vez criados, passam a ter uma existência objetiva independente e irredutível à atividade que os criou.
O conceptualismo vai admitir a existência de “particulares” e de “conceitos mentais”, sem existência fora da mente, que “organizam”, que servem de pattern para os particulares. Ora, a gramática gerativa se pretende real: “Ela é uma das coisas mais reais no mundo”, mas palavras de Chomsky. Logo, ela não é apenas um “pattern” que permite o agrupamento dos particulares, como são os “sound patterns” de Sapir.
Para Hjelmslev, o que importa na linguagem é o sistema abstrato, o conjunto dos “relata” que estão por trás das manifestações lingüísticas concretas.
Toda teoria lingüística, na construção de seu objeto teórico, presume uma resposta ao problema ontológico, e será em função dessa resposta que as questões metodológicas fundamentais serão abordadas.
4. HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA: AS OPÇÕES “NOCIONAL” E “FILOLÓGICA” A história da lingüística ocidental anterior ao século XIX apresenta um grande número de propostas de tratamento dos fatos lingüísticos. Em Platão, em Aristóteles e nos estóicos podem-se encontrar os rudimentos de uma teoria das partes do discurso, construídas com motivações lógico-filosóficas, teoria que vai ser desenvolvida pelos lógicos medievais; com o0 objetivo de registrar formas lingüísticas de um passado monumental com vistas à adequada apreciação da literatura ática, os gramáticos alexandrinos propõem uma gramática do grego de caráter normativo-prescritivo; as gramáticas gerias dos séculos XVII e XVIII propuseram-se enunciar os princípios que definem a organização fundamental da linguagem humana, definindo a linguagem de que as línguas naturais são realizações particulares; para explicar a diversidade e a desigualdade entre as línguas, os filósofos-linguistas do século XVIII se põem a especular sobre a origem e os processos evolutivos das línguas.
Podemos proceder, então, a uma classificação das opções que encontramos no estado da linguagem anterior ao século XIX. A classificação encontra duas opções fundamentais: a nocional e a filológica.
A opção nocional ocupa-se da linguagem a partir das relações som/sentido. Possui fundamentação lógico-filosófica e concebe a linguagem como representação. Concentra-se na função representativa universal da linguagem e nos elementos que a tornam possível; ignora todo e qualquer tipo de variação lingüística, seja no tempo ou no espaço.
A opção filológica já não ignora a variação lingüística, mas a concebe em função de uma perspectiva normativo-prescritiva (correto/incorreto), à luz da qual toda variação é desvio. Pretende preservar formas de língua tidas por “clássicas” e, para isso, dedica-se à descrição detalhada dessas formas; privilegie as formas escritas em detrimento da fala.
Classificações “exclusivas” deveriam ser construídas a partir de “traços” necessários e suficientes. Por exemplo, para definir homem (- “ser humano”) poderíamos usar os “traços” animal e racional, de forma que a definição seria: o homem é um animal racional. Tanto o traço animal quanto o traço racional são necessários, isto é, qualquer indivíduo precisa apresentar o traço animal e o traço racional para ser incluído no conjunto dos homens; os dois traços, em conjunto, são suficientes na medida em que todos os indivíduos que os apresentarem serão considerados homens.
As caracterizações devem ser entendidas como “conceitos abertos”. Os “traços” nas caracterizações não são necessários nem são suficientes; dentre os “traços” utilizados nas caracterizações, há alguns que são mais “salientes” e que são privilegiados como critérios de classificação. A “centralidade” de alguns “traços” faz com que os usemos preferencialmente para fazer referência à opção e implica que nos outros “traços”, os não-centrais, haja maior variação de presença/ausência sem que se saia da opção.
Ambas as opções apresentam uma característica comum, que é a subordinação dos estudos da linguagem a outro saber qualquer: seja a lógica, a filosofia ou a epistemologia, no caso das teorias nocionais, seja a crítica literária, a retórica ou a preservação de formas “clássicas” de linguagem, nas teorias da opção filológica. Esses vários “pontos de vista/”, esses vários objetivos e/ou motivações deverão criar, então, objetos distintos para a investigação lingüística.
5. HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA: A OPÇÃO “HISTÓRICA”
No século XIX, os estudos lingüísticos sofrem uma modificação em seu caráter, em função da alteração de seus objetivos. Ao invés de se estudar a linguagem para fazer filosofia ou para fazer crítica literária, como nos séculos anteriores, passa-se a estudar a linguagem pensando-se em fazer ciência. Esse novo objetivo vai determinar não só uma metodologia como também um novo objeto para a lingüística. A proposição de “fazer ciência” força os comparativistas a se afastarem da praxis dos lingüistas precedentes e a desenvolveram novas formas de abordar os fatos lingüísticos, bem como os força a definir um novo objeto para a lingüística. A comparação entre as línguas e a história de seus desenvolvimentos é esse novo objeto.
A descoberta do sânscrito foi o “lance de sorte” que permitiu que Franz Bopp criasse uma nova forma de encarar os fatos lingüísticos. Tudo levava a crer, no início do século XIX, que a comparação entre as línguas fosse um bom lugar para de encontrar regularidades. Como as primeiras regularidades tivessem sido observadas nos sistemas morfológicos e fonológicos das línguas comparadas, foi sobre a morfologia e a fonologia das línguas que os comparativistas debruçaram-se. A história das línguas, obtida a partir do método comparativo, passou a ser central, na medida em que permitia um estudo científico dos fatos lingüísticos, ou seja, permitia a obtenção de leis gerais que descrevem regularidades.
A lingüística do século XIX privilegiou a “adequação descritiva”. Todos os aspectos da linguagem para os quais não se dispunham de leis descritivas razoáveis, formuladas em termos histórico-comparativos, foram relegados a um segundo plano.
A lingüística histórico-comparativa do século XIX força-nos a reconhecer uma terceira opção, ao lado das opções nocional e filológica, a opção histórica.
A opção histórica concentra sua atenção no caráter histórico dos fenômenos lingüísticos. Nessa perspectiva, a questão da variação lingüística, no tempo e no espaço, passa a ser o objeto de estudos. Isso significa, entre outras coisas, que se abandona a idéia de que a tarefa da lingüística é identificar uma essência da língua, mas se reconhece que as línguas, como todo fenômeno humano e social, mudam historicamente e que, portanto, a tarefa de quem quer que seja no estudo objetivo da linguagem é descrever mudanças e descobrir as leis subjacentes a elas.
6. HOMOGENEIZAÇÃO, AUTONOMIA E CIENTIFICIDADE Chegamos de novo ao século XX e começamos com Saussure.
O que mais chama a atenção no trabalho de Saussure é a insistência quanto à delimitação de um objeto homogêneo para a lingüística; para Saussure só é lingüística o estudo que tomar por objeto a langue, tudo o mais fica fora do domínio da ciência. Há mais coisas no fenômeno linguagem além da langue, mas essas outras coisas são periféricas e dependem da langue para sua abordagem. A langue é a parte essencial da linguagem.
Saussure pretende tornar a lingüística, verdadeiramente, uma ciência. Para isso, é preciso homogeneíza de qualquer forma o objeto, uma vez que não é possível descobrir as regularidades necessárias para o estudo científico da linguagem se a lingüística não voltar sua atenção para um objeto homogêneo. A noção da langue tem, no quadro da teoria saussuriana, o papel de tornar homogêneo o objeto e permitir à teoria lingüística aceder à explicatividade.
A intenção de tornar a lingüística “científica” leva Saussure a priorizar o formal, uma vez que é nele que se encontram as maiores possibilidades de obtenção de regularidades e de leis. Esse privilegiamento do formal esclarece a sintatização da semântica na teoria de Saussure. Trabalhar com os níveis fonológico e morfológico numa perspectiva formalizante é relativamente simples. Trabalhar com os significados, no entanto, é um pouco mais difícil. A saída saussuriana para esse problema está em fazer semântica não do significado diretamente, mas do valor. Assim, ao tratar semanticamente um signo como “cadeira”, Saussure não vai se preocupar em saber qual é o seu significado, mas vai investigar as relações que esse signo mantém com outros signos, como “sofá”, “poltrona”, “mesa” etc. O conjunto dessas relações vai determinar o valor de “cadeira” no sistema. Saussure é levado, por sua visão rigorosa de sistema, a considerar como único conjunto válido para a determinação do valor de qualquer signo a totalidade do sistema, ou seja, a langue.
Nota-se que a noção de valor exerce um papel semelhante ao da noção de langue: ela homogeneíza o objeto.
Saussure atribui à langue outra característica significativa: a autonomia. Ele entende a langue como um sistema de signos que independe dos falantes e do meio social. A autonomia é a “chave” para entendermos o papel “revolucionário” do pensamento de Saussure.
Com Saussure, o estudo da linguagem passa a ser um objetivo em si mesmo e não mais um estudo ancilar da lógica, ou da crítica literária. A língua é um sistema e, na verdade, é o próprio sistema que muda e que tem história. Assim, o estudo autônomo do sistema (lingüística sincrônica) é a condição lógica para o estudo de sua história (lingüística diacrônica).
7. AS OPÇÕES DE CHOMSKY
Noam Chomsky, como Saussure, insiste na homogeneidade do objeto da lingüística. Como Saussure, ele vai também buscar essa homogeneidade na noção de estrutura. Diferentemente de Saussure, Chomsky vai entender a estrutura como um conjunto de regras. Deste modo, Chomsky dá um caráter dinâmico à sua noção de estrutura; em função disso, Chomsky não precisa considerar a estrutura como um sistema fechado e pode chegar à noção de criatividade lingüística.
Chomsky leva muito a sério a idéia de que as estruturas estão presentes na cabeça dos falantes, isto é, o caráter psicológico do conhecimento lingüístico. Em função dessa “psicologização” do conhecimento lingüístico, da competência lingüística, uma série de questões preocupam Chomsky. A aquisição da linguagem é uma delas.
A solução chomskiana para a questão da aquisição da linguagem retoma o racionalismo clássico e pode ser entendida como a conjugação de duas doutrinas diferentes sobre os mecanismos mentais responsáveis pela linguagem: o antiempirismo e o inatismo.
A tese fundamental do antiempirismo chomskiano é que o processo de aquisição não pode se restringir aos mecanismos de aprendizagem que os empiristas atribuem à mente humana: associação e generalização por abstração. Segundo Chomsky, tais mecanismos são demasiado pobres para dar conta do fato de que uma criança aprende um sistema imensamente complexo de regras com base numa amostra de fala pequena e muitas vezes deficiente. Para ele, tal aprendizagem consiste num processo de geração e avaliação de teorias científicas.
O conjunto das escolhas metodológicas de Chomsky interfere fortemente na determinação do objeto teórico de sua gramática gerativa. Todo o esforço de investigação fica restrito a um aspecto extremamente limitado do objeto observacional, embora, na perspectiva de Chomsky, seja o que há de mais “central”, de mais “essencial”, no fenômeno linguístico.
Chomsky escolhe a competência como objeto da lingüística, excluindo do domínio da disciplina, consequentemente, todos os fatos do desempenho. Mas Chomsky não se ocupa da competência de forma homogênea: no interior dela, a sintaxe é considerada nuclear, enquanto a semântica e a fonologia são periféricas.
8. A OPÇÃO “INTERDISCIPLINAR”
Uma olhada rápida no conjunto das teorias atualmente em concorrência nos permite identificar uma dicotomia que opõe, de um lado, os lingüistas que, como Saussure e Chomsky, “homogeneízam” o objeto de estudos e “autonomizam” a lingüística e, de outro, os lingüistas que trabalham com objetos heterogêneos e “interdisciplinarizam” a lingüística. Labov é um exemplo de lingüista desse segundo grupo.
Para Labov, o objeto da lingüística é a gramática da comunidade de fala, o sistema de comunicação usado nas interações sociais. Esse objeto é essencialmente heterogêneo em duas direções: ele comporta um grande número de variantes, estilos, dialetos e línguas usadas pelos falantes e não pode ser arbitrariamente retirado do nicho social em que é usado.
Segundo Labov, a homogeneização do objeto obtida pela introdução de noções “abstraizantes”, como a langue de Saussure ou a competência do falante/ouvinte ideal de Chomsky, “idealiza” de tal modo os dados da diversidade observacional que impede simplesmente a construção de um objeto teórico que se mantenha observacionalmente adequado. A questão fundamental que Labov coloca é “como pode a linguagem ‘variar’ sem interferir na comunicação entre os membros de uma comunidade de fala?” e para responder à questão, ele tem que postular um “sistema linguístico” para essa comunidade que seja linguisticamente heterogêneo, ou seja, u m”sistema” em que convivam registros, dialetos, estilos etc. Para explicar o funcionamento de seu sistema heterogêneo, Labov tem que ligar visceralmente a variação lingüística às necessidades sociais de comunicação, integrando o linguístico ao social.
9. AS “FILIAÇÕES” DA LINGUISTICA Correspondendo às várias possibilidades de escolha do objeto teórico que distinguimos até o momento na lingüística contemporânea, encontramos três tendências de “filiação” da lingüística a outras disciplinas:
a) uma tendência “sistemática”, que busca ver na linguagem um “sistema” autônomo, sem relações com os falantes ou com o meio social;
b) uma tendência “psicologizante”, que destaca as relações da linguagem com os falantes e
c) uma tendência “sociologizante”, que privilegia as relações entre a linguagem e o seu ninho social.
Saussure, Hjelmslev, Bloomfield, entre outros, representam a tendência “sistemática”. Para eles, a linguagem é um objeto autônomo cujas relações com outras áreas do saber são, do ponto de vista da lingüística, periféricas. A “filiação” é a teoria dos sistemas; esta filiação é meramente metodológica.
A segunda tendência tem em Chomsky seu principal representante. Para ele, a lingüística é parte da psicologia, presente na mente dos falantes/ouvintes. A filiação da lingüística à psicologia é meramente ontológica.
As teorias que seguem a tendência “sociologizante” ocupam-se ou do uso que os falantes fazem das expressões lingüísticas, “filiando-se” à filosofia da ação, ou das determinações sociais presentes na escolha das formas lingüísticas utilizadas, “filiando-se” à sociologia. Como no caso de Chomsky, essas “filiações” assumem um caráter ontológico, determinando a natureza do objeto.
10. CONCLUSÕES
Resumamos, então, os parâmetros principais segundo os quais as diferentes teorias delimitam e definem o objeto da lingüística.
Cada teoria delimita para si um objeto observacional, ou seja, uma “porção” da realidade que constituirá o seu objeto de estudos. Essa “porção” da realidade pode consistir quer de elementos puramente lingüísticos, num sentido estrito (fonemas, morfemas, palavras, sentenças, textos etc.), quer em elementos lingüísticos acoplados a seu contexto de produção, situação histórica, conjunto dos conhecimentos dos falantes que os empregam etc. Ela pode privilegiar a língua escrita ou a língua falada, considerar uma ampla gama de variações dialetais, de registros etc. ou selecionar um “extrato superior” da linguagem, definido quer por um corpus de textos canônicos, quer por uma “norma culta” ou por outro critério qualquer. A porção da realidade estudada pode ainda constituir na totalidade das línguas e de seus diferentes estágios de evolução ou restringir-se a algum subconjunto geográfica ou historicamente delimitado.
As opções metodológicas não só delimitam o objeto como também determinam a estruturação interna das teorias. Nesse sentido, privilegiar a sintaxe, em detrimento, por exemplo, da semântica ou da pragmática, corresponde precisamente a privilegiar aquilo que é mais diretamente formalizável. Analogamente, privilegiar a sentença, em oposição ao texto ou ao discurso, é resultado da mesma opção metodológica.